sexta-feira, 5 de março de 2021

CLÁSSICOS DO CORDEL: HISTÓRIA DA DONZELA TEODORA (PARTE II)

(Para ler o início, clique em História da donzela Teodora, parte I)

El rei mandou que outro sábio
Entrasse em discussão
Etão escolheram um
Dos de maior instrução
A quem chamavam na Grécia
Professor da criação.

Abraão de Trabador
Veio argumentar com ela
E disse logo ao entrar:
- Previne-te bem, donzela
Dizendo dentro si
“Eu hoje hei de zombar dela”.

Então a donzela disse:
- Mestre, estarei disposta
De todas suas perguntas
O senhor terá resposta
Se tem confiança em si
Vamos fazer uma aposta.

- Minha aposta é a seguinte:
De nós o que for vencido
Ficará aqui na corte
Publicamente despido
Da forma que veio ao mundo
Na hora que foi nascido.

O sábio disse que sim
Mandaram o termo lavrar
E a donzela pediu
Ao rei para assinar
Para a parte que perdesse
Depois não se recusar.

Lavraram o termo e foi
Às mãos do rei Almançor
Para fazer válido o trato
E ficar por fiador
Obrigando a quem perdesse
Dar as roupas ao vencedor.

O sábio aí perguntou:
- Qual é a coisa mais aguda?
Disse ela: - É a língua
Duma mulher linguaruda
Que corta todos os nomes
E o corte nunca muda.

- Donzela qual é a coisa
Mais doce do que mel?
- O amor dum pai a um filho
Ou duma esposa fiel
A ingratidão de um desses
Amarga mais do que fel.

O sábio disse: - Donzela
Conheces os animais?
Quero agora que descrevas
Alguns irracionais
Me diga qual é o bicho
Que possui oito sinais?

- Mestre, isto é gafanhoto
Vive embaixo dos outeiros
Tem pescoço como touro
Esporas de cavaleiros
Tem olhos como marel
Um pássaro dos estrangeiros.

- Focinho como de vaca
Tem pés como de cegonha
Tem cauda como de víbora
Uma serpente medonha
E é infeliz o vivente
Que a boca dela se ponha.

- Tem peito como cavalo
E não ofende a ninguém
Tem asas como de águia
A que voa muito além
São antes oito sinais
Que o gafanhoto tem.

Perguntou o sábio a ela:
- Que homem foi que viveu
Porém nunca foi menino
Existiu, mas não nasceu
A mãe dele ficou virgem
Até que o neto morreu?

- Este homem foi Adão
Que da terra se gerou
Foi feito já homem grande
Não nasceu, Deus o formou
A terra foi a mãe dele
E nela se sepultou.

- Foi feita mas não nascida
Essa nobre criatura
A terra foi a mãe dele
Serviu-lhe de sepultura
Para Abel, o neto dela
Fez-se a primeira abertura.

- Donzela, qual é a coisa
Que pode ser mais ligeira?
Respondeu: - O pensamento
Que voa de tal maneira
Que vai ao cabo do mundo
Num segundo que se queira. 

O sábio fitou-a e disse:
- Donzela, diga-me agora
Qual o prazer de um dia
Qual o prazer duma hora
Dum negócio que se ganha
Dum passeio dado fora?

A donzela respondeu:
Com a maior rapidez
Disse: - Um homem viajando
E se bom negócio fez
É um dos grandes prazeres
Que terá por sua vez.

- Donzela, o que é a vida?
Disse ela: - Um mar de torpeza
O que pode assemelhar-se
À vela que está acesa
Às vezes está tão formosa
E se apaga de surpresa.

- Donzela, por quantas formas
Mente a pessoa afinal?
Respondeu: - Mente por duas
Tendo como essencial
Exaltar a quem quer bem
E pôr taxa em quem quer mal.

- Donzela, que é velhice?
Respondeu com brevidade:
- É vestidura de dores
É a mãe da mocidade
- E o que mais aborrecemos?
Respondeu: - É a idade.

- Donzela, qual é a coisa
Que quem tem muito ainda quer?
Disse ela: - É o dinheiro
Que o homem e a mulher
Não se farta de ganhar
Tenha a soma que tiver.

- Qual é a coisa que o homem
Possui e não pode ver?
Disse ela: - O coração
Que aberto tem que morrer
Ver a raiz dos seus olhos
Não há quem possa obter.

- Donzela, qual foi o homem
Que por dois ventres passou?
Disse a donzela: - Foi Jonas
Que uma baleia o tragou
Conservou-o dentro três dias
E depois o vomitou.

O sábio disse: - Donzela
Qual o homem mais de bem?
Disse ela: - É aquele
Que menos defeitos tem
- Quem terá menos defeitos?
- Isso não sabe ninguém.

- Donzela, qual é a coisa
Que não se pode saber?
- O pensamento do homem
Se ele não quer dizer
Por mais que a mulher procure
Não poderá obter.

- Donzela, o que é a noite
Cheia de tantos horrores?
Disse ela: - É descanso
Dos homens trabalhadores
É capa dos assassinos
Que encobre os malfeitores.

- Onde a primeira cidade
Do mundo foi construída?
- A cidade de Nínive
A primeira conhecida
Que depois de certo tempo
Foi pela Grécia abatida.

Perguntou: - Qual o guerreiro
Que teve a antiguidade?
Respondeu: - Foi Alexandre
Assombro da humanidade
Guerreou vinte e dois anos
E morreu na flor da idade.

- Donzela, falaste bem
Do maior conquistador
Diga dos homens qual foi
O maior sentenciador?
- Pilatos, que deu sentença
a Cristo Nosso Senhor.

- De todos os patriarcas
qual seria o mais valente?
- O patriarca Jacó
Que lutou heroicamente
Com os anjos mensageiros
Do monarca onipotente.

- Qual foi a primeira nau
Que foi para o estaleiro?
- Foi a Arca de Noé
A que no mar foi primeiro
Onde escapou um casal
De tudo no mundo inteiro.

- O que corta mais
Que a navalha afiada?
É a língua da pessoa
Depois de estar irada
Corta com mais rapidez
Que qualquer lâmina amolada.

- Qual é o maior prazer
Com que se ocupa a história?
Respondeu: - Quando um guerreiro
No campo ganha vitória
Sabei que não pode haver
Tanto prazer tanta glória.

O sábio disse: - Donzela
Tens falado muito além
Me diga que condições
O homem no mundo tem?
Disse a donzela: - Tem todas
Para o mal e para o bem.

- É manso como a ovelha
E feroz como o leão
Seboso como o suíno
É limpo como o pavão
É falso como a serpente
É tão leal como o cão.

- É fraco como o coelho
Arrogante como o galo
Airoso como o furão
Forçoso como o cavalo
E mais te digo que o homem
Ninguém pode decifrá-lo.

- É calado como o peixe
Fala como papagaio
É lerdo como a preguiça
É veloz igual o raio
É sábio quando ouviu isso
Quase que dar-lhe um desmaio.

Então inventou um meio
Para ver se a pegaria
Perguntou: - O sol da noite
Terá luz quente ou fria?
A donzela respondeu
Que à noite sol não havia.

- Com a presença do sol
É que se conhece o dia
Se de noite houvesse sol
A noite não existia
E sem o sereno dela
Todo vivente morreria.

- Sem água, sem ar, sem luz
A terra não tinha nada
Não tinha os seres que têm
Seria desabitada
A própria vegetação
Não podia ser criada.

- Os reinos da natureza
Cada um possui um gênio
É necessário o azoto
Precisa o oxigênio
Para a infusão disso tudo
O carbono e o hidrogênio.

- O dia Deus fez bem claro 
A noite fez bem escura
Se de noite houvesse sol
Estava o homem à altura
De notar esse defeito
E censurar a natura.

O sábio baixou a vista
E ouviu tudo calado
Nada teve a dizer
Pois já estava esgotado
E tinha plena certeza
Que ficava injuriado.

Disse ao público: - Senhores
A donzela me venceu
Não sei com qual professor
Esta mulher aprendeu
Aí a donzela disse:
- Então o mestre perdeu?

Ele vendo que estava
Esgotado e sem recursos
Ficou trêmulo e muito pálido
Faltando-lhe até os pulsos
Prostrou-se aos pés de El rei
Se sufocando em soluços.

E disse: - Senhor, confesso
A vossa real majestade
Que vejo nesta donzela
A maior capacidade
Ela merece ter prêmio
Pois tem grande habilidade.

A donzela levantou-se
Foi ao soberano rei
Então beijando-lhe a mão
Disse: - Vos suplicarei
Mande o sábio entregar-me
Tudo que dele ganhei.

O rei ali ordenou
Que o sábio se despojasse
De todas as vestes que tinha
E à donzela as entregasse
O jeito que tinha ali
Era ele envergonhar-se.

O sábio pôs-se a despir-se
Como quem estava doente
Fraque, colete e camisa
Ficando ali indecente
E pediu para ficar
Com a ceroula somente.

Depois sufocado em pranto
Prostrado disse à donzela:
- Resta-me apenas a ceroula
Não posso me despir dela!
A donzela perguntou-lhe:
- O senhor nasceu com ela?

- O trato foi o seguinte:
De nós quem fosse vencido
Perante a todos da corte
Havia de ficar despido
Como quando veio ao mundo
Na hora que foi nascido.

El rei foi o fiador
Nosso ajuste foi exato
O senhor tem que despir-se
E dar-lhe fato por fato
Ficando com a ceroula
Não teve efeito o contrato.

E não quis dar a ceroula
O rei mandou que ele desse
Ou pagaria à donzela
O tanto que ela quisesse
Tanto que a indenizasse
Embora que não pudesse.

- Donzela, quanto quereis?
Perguntou o sábio enfim
A donzela ali fitou-o
E lhe respondeu assim:
- A metade do dinheiro
Que meu senhor quer por mim.

O rei ali conhecendo
O direito da donzela
Vendo que toda razão
Só podia caber nela
Disse ao sábio: - Mande ver
O dinheiro e pague a ela.

Cinco mil dobras de ouro
A donzela recebeu
O sábio também ali
Nem mais satisfação deu
Aquele foi um exemplo
Que a donzela lhe vendeu.

O rei então disse a ela:
- Donzela, podes pedir
Dou-te a palavra de honra
Farei-te o que exigir
De tudo que pertencer-me
Poderás tu te servir.

Ela lhe beijou a mão
E disse: - Peço que dê-me
A quantia do dinheiro
Que meu senhor quer vender-me
Deixando eu voltar com ela
Para assim satisfazer-me.

O rei julgou que a donzela
Pedisse para ficar
Tanto que se arrependeu
De tudo lhe franquear
Mas a palavra de rei
Não pode se revogar.

Mandou dar-lhe o dinheiro
Discutiu também com ela
Mas ciente de tudo
Quanto podia haver nela
E disse: - Vinte mil dobras
Não pagam esta donzela.

Voltou ela e o senhor
À sua antiga morada
Por uma guarda de honra
Voltou ela acompanhada
O senhor dela trazendo
Uma fortuna avaliada.

Ficaram todos os sábios
Daquilo impressionados
Pois uma donzela escrava
Vencer três homens letrados
Professores de ciências
Doutores habilitados.

Abraão de Trabador
Com todos não discutia
Já tinha vencido muitos
Em música e filosofia
Em história natural
Matemática e astronomia. 

Ele descrevia a fundo
Os reinos da natureza
Era engenheiro perito
De tudo tinha a certeza
Descrevia o oceano
Da flor d'água a profundeza.

Tanto quando ele entrou
Que fitou bem a donzela
Calculou dentro de si
A força que havia nela
Confiando em sua força
Por isso apostou com ela.

Caro leitor, escrevi
Tudo que no livro achei
Só fiz rimar a história
Nada aqui acrescentei
Na história grande dela
Muitas coisas consultei.

FIM

Para ouvir esse cordel sendo recitado, clique no vídeo abaixo e confira:




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