Memórias póstumas de Brás Cubas em cordel
(TRECHOS)
(Varneci Nascimento)
Com a pena da galhofa,
Tinta da melancolia,
Vou contar depois de morto
Como eu vivi um dia,
Cumprindo uma obrigação
Que para o mundo eu devia.
Para não ser trivial,
Como fui quando vivi,
E por ser Memórias póstumas
De Brás Cubas, isto aqui,
Trata-se da minha história
Feita depois que morri.
Morte, que aconteceu
Na tarde de sexta-feira,
Às duas horas da tarde,
Foi a minha derradeira
Na Chácara de Catumbi,
Que vivi a vida inteira.
Era o século dezenove,
Agosto era o mês,
O ano sessenta e nova,
Idade, sessenta e três.
Com mais um, de onde estou,
Escrevo isso a vocês.
[...]
Umas nove ou dez pessoas
Foram me acompanhar
Na derradeira viagem,
Para nunca mais voltar,
Sendo três da minha família,
Que nem era pra contar.
Foi uma pneumonia
Que a minha vida tirou,
Veio ajudada por uma
Ideia que fracassou,
Pois a tive, mas a mesma
De forma alguma vingou.
[...]
Por pensar ser superforte,
Aos poucos fui me afracando.
A doença, a toda força,
Ia me debilitando.
Com isso o fim dos meus dias
Desta forma foi chegando.
Deitado na minha cama,
De repente vi entrar
Uma senhora de preto,
Tristonha, quase a chorar:
A ex-amante que vinha
Se ex-amor visitar.
De dois grandes namorados
Nada mais havia ali.
Eu, doente, já morrendo,
Ela, velha, percebi,
Era o passado presente,
Como antes nunca vi.
[...]
E na frente de Virgília
Comecei a delirar
Entre o Éden e Abraão,
Para assim poder chegar
Ao dia em que nasci,
Que foi espetacular.
Dia vinte de outubro
De um, oito, zero cinco
Vim a esse mundo para,
Com toda força e afinco,
Tornar-me da prole Cubas
O mais precioso brinco.
[...]
Em março do ano seguinte
Eu fui então batizado
Pelo coronel Rodrigues
E sua esposa de lado,
Descendentes das famílias
Do Norte tão afamado.
[...]
Crescia naturalmente
Fazendo estripulia,
Malino e muito arguto,
Gostava de zombaria.
A cabeça duma escrava
Quase arrebentei um dia.
E tudo isso porque
Um doce me havia negado,
De cinza no tacho cheio
Inda joguei um punhado,
Daí porque a alcunha
De “Menino Endiabrado”.
[...]
A assombração de todos
Foi grande e imediata.
Na escola também fui
Uma criança ingrata
Que atazanava o mestre,
Seu Ludugero Barata.
Lá conheci Quincas Borba,
Um menino gracioso,
Tão inventivo, travesso
E por demais buliçoso,
Que brincando só fazia
Papel de príncipe famoso.
Mas, já com dezessete
Anos de vida singela,
Tornei-me cativo duma
Cortesã bastante bela,
Espanhola sem escrúpulos
Chamada “Linda Marcela”.
Mergulhei numa paixão
Profunda por tal mulher,
Mesmo sabendo que ela
Amava um tal Xavier.
Aí vi que o coração
Faz conosco o que quiser.
[...]
Daí não levei a sério
Aquela universidade.
Um aluno sem ciência,
Cheio de mediocridade.
O diploma para mim era
A carta de liberdade.
Separar-me de Marcela
Foi meu grande cataclismo.
Fui fraco por não lutar,
Aceitando o ostracismo,
Mas, na Europa, assisti
O parto do Romantismo.
Justo quando me chegou
De meu pai uma missiva:
Se não vieres depressa
Não achas tua mãe viva,
Que ela, além do reumatismo,
Tem doença digestiva.
Com tal notícia parti,
Feito uma bala, ligeiro,
Pra poder ver minha mãe,
Que me amou o tempo inteiro,
A fim de achá-la ainda
Viva no Rio de Janeiro.
[...]
E nisso chegou meu pai
Pra poder me convencer
A tornar-me um político.
Fui franco em lhe dizer:
- Não entendo dessas coisas.
- Nem precisa, basta ser...
Até uma noiva pra mim
Ele havia arrumado,
Porque para ser político
Precisava ser casado,
E ainda mais com uma mulher
De nome bem respeitado.
Seu nome era Virgília,
Filha de um conselheiro,
O qual se chamava Dutra,
Homem de fama e dinheiro,
Respeitado na política
Em todo Rio de Janeiro.
[...]
Após um mês já estava
Cheio de intimidade.
Com Dutra e sua família
Era grande a amizade,
Mas adivinhem quem eu
Um dia vi na cidade?
Foi a Marcela que vi
Num cubículo empoeirado,
Mas a beleza de outrora
A doença havia levado
E trazido uma velhice
Precoce e lhe acabado!
Não a conheci na hora,
Ela tentou se esquivar,
Mas não teve como, e veio
Depois me cumprimentar.
Daí em diante nós dois
Começamos a conversar.
[...]
Se no passado Marcela
Não foi minha inteiramente,
A Virgília também não,
Porque, repentinamente
Arrumaram para ela
Um mais forte pretendente.
Era um tal de Lobo Neves,
Que Virgília conheceu.
Não era mais elegante,
Nem simpático do que eu,
Mas por grandes influências,
Esse homem me venceu.
[...]
Quando era pra casarmos,
Eu pouco lhe tive amor,
Mas, agora ela casada,
Senti certo ardor
Dentro do meu coração
Que viu seu grande valor.
E assim o nosso amor
Nasceu igual um vulcão
Que, não contendo as lavas,
Entra em erupção,
Botando tudo pra fora,
Sem olhar destruição.
[...]
Depois desse acontecido
Virgília e eu passamos
A nos amarmos bem mais
Do que quando começamos,
E bem mais apaixonados
Com certeza nós ficamos.
Até que um certo dia
Percebi-a abatida,
Fatigando-se com tudo,
Cansava até na descida,
Com mal-estar e enjoo
Próprio de quem engravida!
[...]
Lá se foi ela para o Norte.
No Rio sozinho fiquei
Pensando no seu amor,
No tanto que a amei:
“E minha vida agora
Não sei como viverei!”
Lembram-se do Quincas Borba?
Pois veio me visitar,
Pra sua filosofia
Com todo esmero explicar
E eu mesmo fiz questão
De com afinco o escutar:
- O Humanitismo tem
Três fases: a expansiva,
Quando aparece o homem.
Surge aí a dispersiva.
O homem absorve todas
Na chamada contrativa.
[...]
Desiludido, saí
Da política muito mal.
Daí chamei Quincas Borba,
O filósofo genial,
Pra podermos fundar juntos
Na cidade um jornal.
[...]
Meu amigo Quincas Borba,
Caro leitor, nessa altura,
Começou a dar sinais
De fraqueza na estrutura
Que agravando virou-se
Em verdadeira loucura.
Na ideia do jornal
Novamente fracassei.
Com meu cunhado Cotrim
Então me reconciliei
E para a Ordem Terceira
A seu convite entrei.
Após três anos ou quatro
Da Ordem queria sair.
Antes encontrei Marcela
Num cortiço a se esvair
E a levei para o médico,
Sem esperar mais porvir.
[...]
Também já estava velho
E via meu fim chegando
Da aurora ao crepúsculo
A vida foi caminhando.
Fazendo o emplasto vi
A doença me pegando.
Daqui do mundo dos mortos,
Leitor, eu o lembrarei:
Se quer ver de novo como
Os meus dias terminei,
Contando o meu declínio
Este livro comecei.
[...]
Gostou do cordel???
Para saber como ele termina, você terá que adquirir o livro.
Memórias póstumas de Brás Cubas em cordel é um livro, o qual costumo mencionar como livro-cordel, já que foge do modelo tradicional de publicação dos folhetos, em termos de tamanho e qualidade das folhas de papel. O livro-cordel costuma ser maior, não na quantidade de páginas, mas no tamanho do livro mesmo. Ainda apresenta uma qualidade melhor das folhas que nele são inseridas, bem como na sua capa. Tudo isso faz com que o livro-cordel custe um pouco mais caro do que o folheto comum, que atualmente custa entre 3 e 5 reais. O outro, por sua vez, custa em torno de 30 reais.
Memórias póstumas de Brás Cubas é um romance escrito pelo ilustre Machado de Assis, um dos maiores representantes do Realismo brasileiro. A sua primeira edição foi publicada em 1881, porém seus capítulos já haviam sido publicados separadamente na Revista Brasileira, em 1880. Tem como personagem principal um homem chamado Brás Cubas, que escreve seu livro do além, depois de sua morte, decorrente de uma pneumonia. O protagonista narra sua trajetória de vida, desde a sua infância, quando sua maior diversão era maltratar os escravos, até a vida adulta, com a sua entrada para a política, a adesão ao "Humanitismo", doutrina filosófica criada pelo seu amigo Quincas Borba, e o envolvimento com várias mulheres. O enredo é marcado por traços fortes da literatura machadiana, como a ironia, a crítica e o diálogo com o leitor.
Interessante, não é??
Que tal ler o livro de Machado de Assis??
Leia também aqui neste blog outros cordéis de Varneci Nascimento: O coronavírus em versos da literatura de cordel e Branca de Neve em cordel.