sexta-feira, 22 de maio de 2020

CLÁSSICOS DO CORDEL: O DINHEIRO OU O TESTAMENTO DO CACHORRO

O dinheiro ou o testamento do cachorro
(Leandro Gomes de Barros)

O dinheiro neste mundo
Não há força que o debande
Nem perigo que o enfrente
Nem senhoria que o mande
Tudo está abaixo dele
Só ele ali é o grande.

Ele impera sobre um trono
Cercado por ambição
O chaleirismo a seus pés
Sempre está de prontidão
Perguntando-lhe com cuidado:
- O que lhe falta, patrão?

No dinheiro tem-se visto
Nobreza desconhecida
Meios que ganham questão
Ainda estando perdida
Honra por meio da infâmia
Gloria mal adquirida

Porque só mesmo o dinheiro
Tem maior utilidade
É o farol que mais brilha
Perante a sociedade
O código dali é ele
A lei é sua vontade.

O homem tendo dinheiro
Mata até o próprio pai
A justiça fecha os olhos
A polícia lá não vai
Passam-se cinco ou seis meses
Vai indo, o processo cai.


Compra cinco testemunhas
Que depõem a seu favor
Aluga dois escrivães
E compra o procurador
Faz dois doutores de prata
Pronto o homem, meu senhor!

Ainda que vá a júri
Compra logo atenuante
Dá um unto nos jurados
Se livra no mesmo instante
Tem o juiz a favor
Jurados e assim por diante.

Essas questões muito sérias
Que vão para o tribunal
Ali se exigem papéis
Que levem prova legal
Cédulas de 500 fachos
É o papel principal.

Dinheiro dá eloquência
A quem nunca teve estudo
Imprime coragem ao fraco
Dá animação a tudo
Vence batalhas sem arma
Faz vez de lança e escudo.

Aonde não há dinheiro
Todo trabalho é perdido
Toda questão esmorece
Todo negócio é falido
Todo cálculo sai errado
Todo debate é vencido.

Pois o homem sem dinheiro
É como um velho demente
Um gato que não tem unha
Cobra que não tem um dente
Cachorro que não tem faro
Cavalo magro e doente.

Porque perante o dinheiro
Tudo ali se torna mole
Porque não há objeto
Que sob seus pés não role
Bote dinheiro no morto
Que a ossada dele bole!

O bacharel por dinheiro
Só macaco por banana
O gato por gabiru
Ou um guaxinim por cana
Só saguim pela resina
Ou bode por jitirana.

A moça tendo dinheiro
Sendo feia como a morte
Caracteriza-se e enfeita-se
Sempre melhora de sorte
Mais de mil aventureiros
A desejam por consorte.

Porque dinheiro na terra
É capa que tudo encobre
Cubra o cachorro com ouro
Que ele tem que ficar nobre
É superior ao dono
Se acaso o dono for pobre.

Eu já vi narrar um fato
Que fiquei admirado
Um sertanejo me disse
Que nesse século passado
Viu enterrar um cachorro
Com honras de potentado.

Um inglês tinha um cachorro
De uma grande estimação
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse então:
- Mim enterra essa cachorra
Inda que gaste um milhão!

Foi ao vigário e disse:
- Morreu cachorra de mim
E urubu do Brasil
Não poderá dar-lhe fim
- Cachorro deixou dinheiro?
Perguntou vigário assim.

- Mim quer enterrar cachorra!
Disse o vigário: - Ó inglês
Você pensa que isto aqui
É o país de vocês?
Disse o inglês: - O cachorra
Gasta tudo desta vez.

- Ele antes de morrer
Um testamento aprontou
Só quatro contos de réis
Para o vigário deixou!
Antes do inglês findar
O vigário suspirou:

- Coitado!, disse o vigário
De que morreu este pobre?
Que animal inteligente
Que sentimento tão nobre
Antes de partir do mundo
Fez-me presente do cobre!

- Leve-o para o cemitério
Que o vou encomendar
Isto é, traga o dinheiro
Antes dele se enterrar!
Estes sufrágios fiados
É factível não salvar.

E lá chegou o cachorro
O dinheiro foi na frente
Teve momento o enterro
Missa de corpo presente
Ladainha e seu rancho
Melhor do que certa gente.

Mandaram dar parte ao bispo
Que o vigário tinha feito
O enterro do cachorro
Que não era de direito
O bispo aí falou muito
Mostrou-se mal satisfeito.

Mandou chamar o vigário
Pronto, o vigário chegou:
- Às ordens, sua excelência!
O bispo lhe perguntou:
- Então que cachorro foi
Que Seu vigário enterrou?

- Foi um cachorro importante
Animal de inteligência
Ele antes de morrer
Deixou a Vossa Excelência
Dois contos de réis em ouro
Se errei, tenha paciência!

- Não foi erro, Seu vigário
Você é um bom pastor
Desculpe eu incomodá-lo
A culpa é do portador
Um cachorro como este
Já vê que é merecedor!

- O meu informante disse
Que o caso tinha se dado
E eu julguei que isso fosse
Um cachorro desgraçado
Ele lembrou-se de mim?
Não o faço desprezado!

O vigário entregou-lhe
Os dois contículos de réis
O bispo disse: - É melhor
Do que diversos fiéis
E disse: - Provera Deus
Que assim lá morressem uns dez!

- E se não fosse o dinheiro?
A questão ficava feia
Desenterrava o cachorro
O vigário ia pra cadeia
Mas como o cobre correu
Ficou qual letras na areia!

Judas era homem santo
Pregava religião
Era discípulo de Cristo
Tinha toda direção
Porém por trinta dinheiros
Dispensou a salvação!

O dinheiro só não pode
Privar do dono morrer
Para o vento no ar
E proibir de chover
O resto se torna fácil
Para o dinheiro fazer.

O sacerdote no templo
Inda estando no sermão
Chega um ateu na igreja
Traga-lhe meio milhão
Que ele vai encontrá-lo
Bota-o na palma da mão.

Havendo muito dinheiro
Casa-se irmã com irmão
O bispo dispensa um quarto
Vai ao papa outro quinhão
O vigário dá-lhe o unto
E por que não casam então?!






Quer ver e ouvir alguém recitando esse cordel?
Clique no vídeo abaixo.





Esse cordel inspirou o grande Ariano Suassuna na elaboração de "O auto da compadecida".
No vídeo seguinte podemos ver uma cena do filme homônimo, inspirada nesse cordel.





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