sexta-feira, 11 de setembro de 2020

CLÁSSICOS DO CORDEL: PROEZAS DE JOÃO GRILO (PARTE II)

(Para ler o início, clique em: Proezas de João Grilo, parte I)

João Grilo disse: estou pronto
Pode dizer a primeira
Se acaso sair-me bem
Venha a segunda e a terceira
Venha a quarta e a quinta
Talvez o Grilo não minta
Diga até a derradeira.

Perguntou: - Qual o animal
Que mostra mais rapidez
Que anda de quatro pés
De manhã por sua vez
Ao meio-dia com dois
Passando disto depois
À tarde anda com três?

O Grilo disse: é o homem
Que se arrasta pelo chão
No tempo que engatinha
Depois toma posição
Anda em pé bem seguro
Mas quando fica maduro
Faz três pés com o bastão

O sultão maravilhou-se
Com a sua resposta linda
João disse: - Pergunte outra
Vou ver se respondo ainda.
A segunda o sultão fez
João Grilo daquela vez
Celebrizou sua vinda.

— Grilo, você me responda
Em termos bem divididos
Uma cova bem cavada
Doze mortos estendidos
E todos mortos falando
Cinco vivos passeando
Trabalham com três sentidos.


— Esta cova é um violão
Com prima, baixo e bordão
Mortas são as doze cordas
Quando canta um cidadão
Canta, toca e faz verso
Cinco vivos num progresso
Os cinco dedos da mão.

Houve uma salva de palmas
Com vivas que retumbou
O sultão ficou suspenso
Seu viva também bradou
Depois pedido silencio
Com outro desejo imenso
A terceira perguntou:

- João Grilo, qual é a coisa
Que eu mandei carregar
Primeiro dia e segundo
No terceiro fui olhar
Quase dá-me a tiririca
Se tirar, mais grande fica
Não míngua, faz aumentar?

— Senhor rei, sua pergunta
Parece me fazer guerra,
Um Grilo não tem saber
Criado dentro da serra
Mas digo pra quem conhece
O que tirando mais cresce
É um buraco na terra.

— João Grilo, vou terminar
As perguntas do tratado
E Grilo disse: pergunte
Quero ficar descansado...
Disse o rei: - É muito exato,
O que é que vem do alto
Cai em pé, corre deitado?

— Aquele que cai em pé
E sai correndo no chão
Será uma grande chuva
Nos barros de um sertão;
O rei disse: - Muito bem
No mundo todo não tem
Outro Grilo como João.

— João Grilo, você bebe?
João disse: - Bebo um pouquinho
E disse: - Eu não sou filho
De Baco que fez o vinho
O meu pai morreu bebendo
Eu o que estou fazendo?
Sigo no mesmo caminho.

O rei disse: - João Grilo
Beber é coisa ruim...

E Grilo respondeu: - Qual?
O meu pai dizia assim:
"Na casa de seu Henrique
Zelam bem um alambique
Melhor do que um jardim!"

O rei disse: - João Grilo
Tua fama é um estrondo
João Grilo disse: - Eu sabendo
O que perguntar respondo
Disse o rei enfurecido:
- O que tem o pé comprido
E faz o rastro redondo?

Senhor rei, tenho lembrança
De tempo da minha avó
Que ela tinha um compasso
Na caixa de bororó
Como esse eu também ando
Fazendo o rastro redondo
Andando com uma perna só.

- João, qual é o bicho,
Que passa pela campina
A qualquer hora da noite
Andando de lamparina?
- É um pequeno animal
Tem luz artificial;
Veja o que determina...

— Esse bicho eu já vi
Pois eu tinha por costume
De brincar sempre com ele
Minha mãe tinha ciúme
Eu andava pelo campo
Uns chamam pirilampo
E outros de vagalume!

O rei já tinha esgotado 
A sua imaginação
Não achou uma pergunta
Que interrompesse a João
Disse: - Me responda agora
Qual é o olho que chora
Sem haver consolação?

O Grilo então respondeu:
Lá muito perto da gente
Tem num outeiro importante
Um moço muito doente
Suas lágrimas tem paladar
Quem não deixa de chorar
É olho d'água vertente.

O rei inventou um truque
Do jeito que lhe convinha.
— Vou arrumar uma cilada
Ver se João adivinha;
Mandou vir um alçapão
Fez outra adivinhação
Escondeu uma bacorinha.

— João, o que é que tem
Dentro deste alçapão?
Se não disser o que é
É morto, não tem perdão
João Grilo lhe respondeu:
- Quem mata um como eu
Não tem dó no coração.

João lhe disse: - Esse objeto
Nem é manso nem é brabo
Nem é grande nem pequeno
Nem é santo nem é diabo
Bem que mamãe me dizia
Que eu ainda caía
Onde a porca torce o rabo!

Trouxeram uma bandeja
Ornada de muitas flores
Dentro dela uma latinha
Cheia de muitos fulgores
O rei lhe disse: - João Grilo
É este o último estrilo
Que rebenta tuas dores!

João Grilo desta vez
Passou na última estica,
Adivinhar uma coisa
Nojenta que se pratica
Fugir da sorte mesquinha
Pois dentro da lata tinha
Um pouquinho de "xinica".

O rei disse: - João Grilo
Veja se escapa da morte
O que tem nesta latinha?
Responda se tiver sorte
Toda aquela populaça
Queria ver a desgraça
Do Grilo franzino e forte.

— Minha mãe profetizou
Que o futuro é minha perda
— Dessas adivinhações
Brevemente você herda;
Faz de conta que já vi,
Como esta hoje aqui
Parece que dá em merda.

O rei achou muita graça
Nada teve o que fazer
João Grilo ficou na corte
Com regozijo e prazer
Gozando um bom paladar
Foi comer sem trabalhar
Desta data até morrer.

E todas as questões do reino 
Era João que deslindava
Qualquer pergunta difícil
Ele sempre decifrava
Julgamentos delicados
Problemas muito enrascados
E João Grilo desmanchava.

Certa vez chegou na corte
Um mendigo esfarrapado
Com uma mochila nas costas
Dois guardas de cada lado
Seu rosto cheio de mágoa
Os olhos vertendo água
Fazia pena o coitado.

Junto dele estava um duque
Que veio o denunciar
Dizendo que o mendigo
Na prisão ia morar
Por não pagar a despesa
Que fizera por afoiteza
Sem ninguém lhe convidar.


João Grilo disse ao mendigo:
- E como é, pobretão,
Que se faz uma despesa
Sem ter no bolso um tostão?
Me conte todo passado
Depois de eu ter-lhe escutado
Lhe darei razão ou não.

Disse o mendigo: - Sou pobre
E fui pedir uma esmola
Na casa do senhor duque
Levei a minha sacola
Quando cheguei na cozinha
Vi cozinhando galinha
Numa grande caçarola.

- Como a comida cheirava
Eu tive apetite nela
Tirei um taco de pão
E marchei pro lado dela
E sem pensar na desgraça
Botei o pão na fumaça
Que saia da panela!

- O cozinheiro zangou-se,
Chamou logo o seu senhor
Dizendo que eu roubara
Da comida o seu sabor
Só por eu ter colocado
Um taco de pão mirrado
Aproveitando o vapor...

- Por isso fui obrigado
A pagar essa quantia
Como não tive dinheiro
O duque, por tirania
Mandou trazer-me escoltado
Para depois de ser julgado
Ser posto na enxovia!

João Grilo disse: - Está bem,
Não precisa mais falar,
Então perguntou ao duque:
- Quanto o homem vai pagar?
- Cinco coroas de prata
Ou paga ou vai pra chibata
Não lhe deve perdoar!

João Grilo tirou do bolso
A importância cobrada
Na mochila do mendigo
Ela foi depositada
E disse para o mendigo:
- Balance a mochila, amigo
Pro duque ouvir a zoada!


O mendigo sem demora
Fez como Grilo mandou
Pegou sua mochilinha
Com a prata e balançou
Sem compreender o truque
Bem no ouvido do duque
O dinheiro tilintou.

Disse o duque enfurecido:
- Mas não recebi o meu; 
Diz João Grilo: _ Sim senhor,
Isto foi o que valeu
Deixe de ser caloteiro
O tinido do dinheiro
O senhor já recebeu!

- Você diz que o mendigo
Por ter provado o vapor
Foi mesmo que ter comido
Seu manjar e seu sabor
Pois também é verdadeiro
Que o tinir do dinheiro
Representa o seu valor!

Virou-se para o mendigo
E disse: - Estás perdoado
Leva o dinheiro que dei-te
Vai pra casa descansado!
O duque olhou para o Grilo
Depois de dar um estrilo
Saiu por ali danado.

A fama então de João Grilo
Foi de nação em nação
Por sua sabedoria
E por seu bom coração
Sem ser por ele esperado
Um dia foi convidado
Pra visitar um sultão.

O rei daquele país
Quis o reino embandeirado
Pra receber a visita
Do ilustre convidado
O castelo estava em flores
Cheio de tantos fulgores
Ricamente engalanado.

As damas da alta corte
Trajavam decentemente
Toda corte imperial
Esperava impaciente
Ou por isso ou por aquilo
Para conhecer João Grilo
Figura tão eminente.

Afinal chegou João Grilo
No reinado do sultão
Quando ele entrou na corte
Que grande decepção!
De paletó remendado
Sapato velho, furado
Nas costas um matulão.

O rei disse: - Não é ele
Pois assim já é demais;
João Grilo pediu licença
Mostrou-lhe as credenciais
Embora o rei não gostasse
Mandou que ele ocupasse
Os aposentos reais.

Só se ouvia cochichos
Que vinham de todo lado
As damas então diziam:
É esse o homem falado?
Duma pobreza tamanha
E ele nem se acanha
De ser nosso convidado!

Até os membros da corte
Diziam num tom chocante
Pensava que o João Grilo
Fosse dum tipo elegante
Mas nos manda um remendado
Sem roupa, esfarrapado
Um maltrapilho ambulante!

E João Grilo ouvia tudo
Mas sem dar demonstração
Em toda a corte real
Ninguém lhe dava atenção
Por mostrar-se esmolambado
Tinha sido desprezado
Naquela rica nação.

Afinal veio um criado
E disse sem o fitar:
- Já preparei o banheiro
Para o senhor se banhar,
Vista uma roupa minha
E depois vá para a cozinha
Na hora de almoçar.

João Grilo disse: - Está bom;
Mas disse com seu botão:
- Roupas finas trouxe eu
Dentro de meu matulão
Me apresentei rasgado
Para ver neste reinado
Qual era a minha impressão.

João Grilo tomou um banho 
Vestiu uma roupa de gala
Então muito bem vestido
Apresentou-se na sala
Ao ver seu traje tão belo
Houve gente no castelo
Que quase perdia a fala.

E então toda repulsa
Transformou-se de repente
O rei chamou-o pra mesa
Como homem competente
Consigo, dizia João:
- Na hora da refeição
Vez ensinar esta gente.

O almoço foi servido
Porém João não quis comer
Despejou vinho na roupa
Só para vê-lo escorrer
Ante a corte estarrecida
Encheu os bolsos de comida
Para toda corte ver.

O rei bastante zangado
Perguntou para João:
- Por que motivo o senhor
Não come da refeição?
Respondeu João com maldade:
- Tenha calma, majestade,
Digo já toda razão!

Esta mesa tão repleta
De tanta comida boa
Não foi posta para mim
Um ente vulgar à toa
Desde sobre-mesa à sopa
Foram postas à minha roupa
E não à minha pessoa!

Os comensais se olharam 
O rei pergunta espantado:
- Por que o senhor diz isto
Estando tão bem tratado?
Disse João: - Isso se explica
Por está de roupa rica
Não sou mais esmolambado.

Eu estando esfarrapado
Ia comer na cozinha
Mas como troquei de roupa
Como junto da rainha...
Vejo nisto um grande ultraje
Homenageiam meu traje
E não a pessoa minha!

Toda corte imperial
Pediu desculpa a João
E muito tempo falou-se
Naquela dura lição
E todo mundo dizia
Que sua sabedoria
Era igual a Salomão.

- FIM -

(João Ferreira de Lima)

Quem é o cordelista?


Imagem: blogkairu.blogspot.com


João Ferreira de Lima nasceu na cidade de São José do Egito, interior do estado do Pernambuco, no dia 03 de novembro de 1902, e morreu no dia 19 de agosto de 1972, na cidade de Caruaru, no mesmo estado. Era astrólogo, escritor, poeta e cordelista. Alguns de seus folhetos são: Sermão profético do Padre Cícero Romão, História de Mariquinha e José de Sousa Leão, O pinto pelado, Peleja de João de Lima e João Athayde.

O cordel que acabamos de ler de João Ferreira de Lima, inicialmente, escrito em sextilhas (estrofes de 6 versos), ainda no final da primeira parte, conforme o dividimos, passou a ser escrito em setilhas (estrofes de 7 versos). Isto se deve ao fato de o cordel ter sido ampliado por João Martins de Athayde. A parte escrita por Ferreira de Lima levou inicialmente o nome de "As palhaçadas de João Grilo", enquanto esta última recebeu o nome de "Proezas de João Grilo". Entretanto, podemos encontrar o cordel com o nome de ambos. No acervo on-line da Fundação Casa de Rui Barbosa, por exemplo, encontramos o cordel citado ora com o nome de um, ora com o nome do outro.


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