quarta-feira, 27 de abril de 2016

GALINHA RAFINHA


TRECHO DO CORDEL ''O SEQUESTRO DA GALINHA E O VELÓRIO DE RAFINHA''
(Vicente Campos Filho)


(…) Imagine que Rafinha
Da família era o xodó
Pequenina se ouvia
Do seu fininho gogó
Só piu-piu e ela cresceu
A voz se fortaleceu
Até virar có-có-có.


(…) Quando eu tava doente
Deitava em minha redinha
Chamava ela pra perto:
“Venha pra cá, venha Rafinha
Ela de mim tinha dó
E vinha có, có-có, có-có
Có-có, có-có ela vinha”.


(…) Foram buscar a defunta
E à dona entregaram
O velório e o enterro
Logo providenciaram
Café, chá, bolachas, broas
Cerca de 10 mil pessoas
Ali se aglomeraram.


Teve até um trio elétrico
Fizeram uma musiquinha
As cozinheiras largaram
As panelas na cozinha
Queimou-se arroz e feijão
Mas ninguém quis perder não
O velório de Rafinha.

   Imagem: Patos Online

Para quem não sabe, este cordel é baseado em uma história verídica que ocorreu na cidade de Patos, interior da Paraíba. Trata-se de uma galinha que era muito mais do que um animal de estimação, já que as suas donas a consideravam integrante da família. 

O seguinte vídeo relata, resumidamente, a história de vida e morte dessa tão estimada galinha. O caso não se limitou a apenas chamar atenção da população patoense, tendo também uma grande repercussão nacional.


O próximo vídeo mostra o clipe de uma música baseada na história da Galinha Rafinha, interpretada pelo humorista Tatu.


Embora muitas pessoas tenham encarado essa história com desprezo, ironia ou humor, outras se sensibilizaram com o ocorrido. O texto abaixo, do Dr. Chico Viana, professor aposentado da UFPB e cronista, aborda de uma maneira reflexiva o sequestro e o enterro da galinha.




O enterro de Rafinha


                Fiquei surpreso ao saber o que aconteceu com Rafinha, a galinha que foi enterrada em Patos como gente. O enterro era simbólico, está certo, mas há pessoas que nem isso conseguem. Morrem e não têm quem as acompanhe na última viagem. A galinha, pelo contrário, foi seguida por um imenso cortejo. Quem mais a pranteava eram as suas donas, que justificaram o préstito com o fato de Rafinha ter sido uma ave muito especial. 
                O enterro foi notícia em todo o Brasil e constitui mais um desses curiosos episódios que marcam a relação dos homens com os animais. Vez por outra vem à tona um caso interessante. Outro dia li sobre um cachorro que herdou a fortuna do dono, embora este tivesse mulher e filhos. Devem tê-lo aporrinhado muito em vida, para ele tomar uma decisão dessas. Gestos assim são diretamente proporcionais ao desencanto dos seus autores com os seres humanos. O desengano leva a que procurem nos bichos a humanidade que não encontram nas pessoas. 
                Isso não quer dizer que os animais por si não mereçam tais demonstrações de amor. Rafinha, por exemplo, era discreta e afetuosa. Não cocoricava alto, ou fora de hora, não tinha aqueles arroubos histéricos próprios da sua espécie nem sujava a cama onde dormia. Também apresentava umas esquisitices (como ser alérgica a frio e a muriçocas) que despertavam o desejo de protegê-la. 
                O estranho não é as donas gostarem dela, mas tantas pessoas haverem comparecido ao enterro (que, ao que eu saiba, não foi programado em nenhuma rede social). Minha explicação para isso é que a sua morte representa um pequeno emblema do nosso tempo. Associam-se ao infortúnio de Rafinha alguns dos delitos que hoje mais infernizam nossas vidas. 
            Ela foi roubada do leito onde inocentemente dormia, e depois sequestrada. Em seguida, trocaram-na por duas pedras de crack. Vejam: só aí já se tem roubo, sequestro e tráfico de drogas -- males com que nos deparamos diariamente na mídia, mas nem sempre envolvendo uma pessoa (digo, uma galinha) só. Como se não bastasse, Rafinha morreu de melancolia, que hoje é considerada o “mal do século”. 
            Isso já seria suficiente para justificar a multidão que compareceu ao enterro, mas pode-se apontar outro importante motivo -- esse de natureza inconsciente: é o inconfesso remorso que sentimos diante das galinhas. Nos acostumamos e matá-las de forma cruel e a comê-las com frívola indiferença no almoço. 
            Quem, tendo na boca uma coxinha macia, uma asa levemente fibrosa, um pescoço úmido do qual se desprende um sabor que estimula em torrentes nossas glândulas salivares -- quem, eu pergunto, se detém para pensar que essas partes deliciosas são de uma ave como Rafinha? Geralmente às alegrias humanas corresponde o sacrifício dos animais, que nutrem nossos encontros festivos com sua carne inocente. A morte da galinha foi uma oportunidade de purgar essa culpa. 
            Culpa, sim, mais do que amor. Amor tinham as donas da galinha, que se recusaram a comê-la e fizeram dela alimento não para o corpo, mas para o coração. 

(Chico Viana) 

Fonte:http://chviana.blogspot.com.br/2012/09/o-enterro-de-rafinha.html

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